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Opinião

Quantos são?

Uma pessoa a mais numa equipa de duas é, de facto, um aumento de 50%. Mas dá a ideia errada, é ardiloso, argumentou o sócio depois da entrevista. Ficou incomodado com aquela artimanha, confessou que teve medo de que o jornalista fosse competente e fizesse a pergunta que se impunha: Quantos são agora na agência?

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Quantos são?

Uma pessoa a mais numa equipa de duas é, de facto, um aumento de 50%. Mas dá a ideia errada, é ardiloso, argumentou o sócio depois da entrevista. Ficou incomodado com aquela artimanha, confessou que teve medo de que o jornalista fosse competente e fizesse a pergunta que se impunha: Quantos são agora na agência?

Marco Pacheco
Sobre o autor
Marco Pacheco

Estamos numa pequena agência de publicidade prestes a tornar-se grande ou, pelo menos, maior. O grande cliente capaz de operar essa transformação caminha por entre as secretárias dos colaboradores com as mãos juntas atrás das costas como se fosse um general na parada a passar revista às suas tropas. Só que, por enquanto, estas tropas não estão sob o seu comando, além de que nunca pegaram numa arma de publicidade, desconhecem como se maneja uma campanha e, portanto, ignoram como se acerta num alvo.

Estes ‘criativos’, assim mesmo entre aspas, não fazem ideia do que é um título ou um layout, os ‘accounts’ nunca fizeram um orçamento na vida e os ‘planeadores estratégicos’ desconhecem o que possa ser um brief, ou bife, ou lá o que é. Com uma honrosa exceção, todos eles ouviram falar destes conceitos no dia anterior, alguns até no próprio dia da visita do potencial grande cliente.

Fazendo as honras da casa, seguem com o general-freguês dois oficiais que são os sócios fundadores da pequena agência, um diretor criativo e uma estratega que se fartaram das multinacionais e decidiram arriscar por sua conta, mesmo sem um cliente certo para começar, condição mínima habitual nestas aventuras empreendedoras.

Ao início, eram apenas os dois e alguns freelancers quando tinham um pico de trabalho. Infelizmente, os picos nunca se transformaram em planaltos e três anos depois a agência continua a viver de pico em pico, com extensos e áridos vales de permeio que nunca permitiram mais do que a contratação de um diretor de arte a título definitivo. Foi justamente por essa altura, numa entrevista a uma publicação do meio, que a sócia estratega afirmou, para grande espanto e desconforto do outro sócio também entrevistado:

— Estamos a crescer, aumentámos a nossa equipa em 50%.

Não era mentira. Uma pessoa a mais numa equipa de duas é, de facto, um aumento de 50%. Mas dá a ideia errada, é ardiloso, argumentou o sócio depois da entrevista. Ficou incomodado com aquela artimanha, confessou que teve medo de que o jornalista fosse competente e fizesse a pergunta que se impunha:

— Quantos são agora na agência?

Não fez, para sorte da sócia, do sócio e da pequena agência, mas outros fizeram. Muitos outros. Esta pergunta persegue a pequena agência desde o seu nascimento. Sempre que conseguem apresentar uma proposta a um cliente de maior visibilidade que possa guindar o negócio a outros patamares, ou são convidados a participar num concurso para uma dessas marcas, chega inevitavelmente um momento em que alguém quer saber da estrutura, da dimensão, da solidez, da capacidade de resposta, em duas palavras:

— Quantos são?

E a sócia, mesmo percebendo as questões do sócio, fartou-se de responder apenas com a verdade:

— Somos dois.

Ou depois do impressionante crescimento de 50%:

— Somos três.

Uma coisa é ser honesto, outra é ser ingénuo, até o sócio diretor criativo começa a perceber a diferença. A criatividade, diz a sócia ao sócio pela enésima vez, não é necessária apenas nas campanhas, nos filmes, nos rádios, nos outdoors, no ponto de venda, ou no digital.
A criatividade não pode servir unicamente para vender os produtos dos clientes, tem de estar, também, ao serviço dos interesses da própria agência. Temos de ser capazes, insiste ela, de dizer de nós mesmos o que dizemos das marcas que trabalhamos. De outra forma, não se consegue ultrapassar o paradoxo das pequenas agências, tão eloquentemente articulado pela sócia na referida entrevista:

— Não se ganham clientes grandes sem estrutura, mas não se ganha estrutura sem clientes grandes.

É preciso quebrar o ciclo, escapar à armadilha e isso só é possível perdendo o medo de ser tão esperto como os outros. Quantas vezes não tiveram os sócios a sensação de que as mensagens dos briefs que lhes passam são tão ou mais enganadoras do que aquela afirmação escolhida para título da entrevista? Muitas vezes, reconheceu enfim o sócio. De maneira que, quando este grande cliente com ares de general lhes disse que tinha apreciado sobremaneira a proposta criativa e lhes fez a pergunta sacramental, a sócia respondeu sem hesitar:

— Somos doze.

E o sócio acrescentou:

— Treze!

E mais: convidou o grande cliente a fazer uma visita às instalações da pequena agência não tão pequena, para que ele pudesse ver in loco a pequena equipa não tão pequena a trabalhar. A sócia ficou em pânico, achou que ele estava a levar a criatividade longe demais e, mal saíram da reunião com o general, tratou de pedir satisfações que foram prontamente dadas:

— Vamos arranjar figurantes.
— Figurantes?
— Sim, pedimos a amigos para estarem na agência durante umas horas e, se puderem trazer computadores, melhor; só temos três.

A sócia achou a ideia brilhante e dois dias depois lá estão eles na pequena agência não tão pequena: os dois sócios, o putativo grande cliente, três accounts saídas diretamente da equipa do restaurante ao lado da agência onde os sócios costumam almoçar, dois planeadores estratégicos recrutados na portaria do prédio, um produtor que por acaso também é primo da sócia, uma administrava casada com ele e alguns criativos que nem sequer sabiam que a profissão existia, um deles formado em veterinária, outro finalista de direito vai para sete anos, além de uma dupla de músicos profissionais numa banda amadora. É precisamente a um destes criativos que o grande cliente pergunta, como que para quebrar o gelo:

— Há quanto tempo estás na agência?
— Há duas horas — responde o redator improvisado.

Faz-se silêncio. Os sócios paralisados de pânico, toda a equipa expectante e o importante freguês, ao fim de longos segundos, a explodir numa gargalhada e a dizer, muito divertido:

— É criativo, está visto.

E todos riem muito. Uns mais amarelos do que outros.

Crónica de Marco Pacheco, diretor criativo executivo da BBDO e escritor

Sobre o autorMarco Pacheco

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Diretor criativo executivo da BBDO e escritor
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