O ‘coach’ de Roma
Mesmo que o conteúdo não tenha mudado assim tanto, foi a forma como a comunicação se modernizou que gerou a perceção de uma grande reviravolta

Sou ateu. E anticlerical. Corro por isso o risco de estar a meter a foice em seara alheia. Perdoe-me desde já quem achar que sim, mas vou arriscar escrever estas linhas focando-me na forma e não no conteúdo.
É sobre comunicação que quero escrever. Longe de mim apontar o dedo, julgar ou sequer comentar alguma coisa sobre quem acredita em Deus e nos seus representantes no planeta Terra.
Já passaram por mim vários Papas – mais do que esta alminha inculta achava. Pensava que João Paulo II, Bento XVI e Francisco eram os Papas da minha vida, quando afinal a minha idade somou mais dois à lista: João Paulo I e Paulo VI.
Todos seres humanos com personalidades, feitios e formas de estar diferentes. Todos sucessores de São Pedro e representantes máximos da igreja católica. Todos embaixadores de uma das ‘marcas’ mais potentes do mundo – quais Apple ou Amazon, quais quê. E todos porta-vozes dessa mesma marca.
Sobre os dois últimos.
Bento XVI. Um homem com uma postura rígida, argumentativo, quase académico, com discursos muito bem estruturados e desenvolvidos a partir de uma forte base teológica e filosófica. Muito cuidadoso com as palavras, mas firme. Foi muitas vezes acusado de ser um Papa pouco próximo do seu rebanho, frio, seco.
Francisco. Desde o seu primeiro discurso, em que disse que o tinham ido buscar ao fim do mundo, demonstrou ser portador de uma linguagem simples, direta, acessível, com recurso constante a metáforas. Gostava de improvisar e desviava-se dos apontamentos para evitar falar ‘teologês’.
Falava diretamente ao povo – e não apenas ao ‘seu’ povo – sem complicar. Deixou-nos ‘soundbites’ que vão sobreviver aos anos. Para mim, “a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar” é uma das expressões mais bonitas e pertinentes que já ouvi.
Mas houve mais, muitos mais, alguns mesmo populares como a igreja ser de “todos, todos, todos”. Simples, diretos e repetitivos. Como se querem os melhores ‘soundbites’.
O primeiro e o segundo são do mesmo século. Representaram a mesmíssima instituição em apenas duas décadas diferentes. Mas se um apetece ouvir, e até nos atrai pelas suas postura e palavras, outro nem tanto. Entre 2005 e 2025, a igreja não mudou, mas parece ter dado uma volta de 180 graus.
Comunicação.
Francisco soube bem aproveitá-la para o benefício da instituição que representa. Durante os 12 anos de pontificado, Francisco foi o ‘coach’ de Roma e foi essa arte que atraiu tantas pessoas a uma instituição a precisar dessa capacidade de transformar discursos herméticos em narrativas perenes.
Mesmo que o conteúdo não tenha mudado assim tanto, foi a forma como a comunicação se modernizou que gerou a perceção de uma grande reviravolta.
Francisco foi um comunicador empático que prestava atenção, sem interromper e fazia perguntas poderosas para reflexão. Foi um ouvinte ativo, dono de um sorriso rasgado e com uma inteligência emocional notável. A instituição que representou estava a precisar de um Francisco ‘storyteller’.
Esperemos que o homem que “nem queria ser Papa” não tenha sido apenas uma brisa passageira. A marca que representou agradece.