Marca global: um novo conceito de marca criado por Hélder Pombinho
O Hélder torna-se num ‘conceituador’ ao criar uma nova categoria de marcas, que as leis nacionais e internacionais nunca abordaram e que pode ser analisada e discutida

Pedro Simões Dias
Fundador da Comporta Perfumes e advogado de proteção de direitos de marcas
Há quinze dias, o Hélder Pombinho, nestas mesmas páginas, escreveu uma crónica em que tentou desfazer o mito de que não é pelo facto de termos uma geografia pequena que não podemos criar uma marca global.
Por marca global, o Hélder entende serem, genericamente, “as identidades que atravessam fronteiras e tornam-se verdadeiras referências nas suas categorias. São reconhecidas por todos, não só pelos seus produtos, mas também pelos seus valores e posicionamento. Estamos a falar de marcas como a Apple, Microsoft, Google, Coca-Cola, Visa, Volvo, Chanel e Adidas, etc.”.
Este conceito do Hélder mistura, do ponto de vista jurídico, dois conceitos de marcas que já tive ocasião de explicar muito brevemente, na crónica sobre o produto Pippy, da Cristina Ferreira: as marcas notórias e as marcas de prestígio.
E, já agora, o Hélder torna-se num ‘conceituador’ ao criar uma nova (passe o pleonasmo) categoria de marcas, que as leis nacionais e internacionais nunca abordaram e que pode ser analisada e discutida.
Vamos por partes:
1. As marcas são notórias quando são incrivelmente reconhecidas na sua classe de marcas (não é óbvio, mas esse conceito parece resultar do art.º 234.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial (CPI)). Por vezes, as marcas notórias são tão, mas tão reconhecidas, que até criam o conceito do seu mercado, assente no seu signo nominativo (o nome), mas não são reconhecidas por toda a gente.
Um dos exemplos de escola é a Valvoline, uma marca norte-americana de óleos para carros, que era tão conhecida, mas tão conhecida, que o meu avô Alfredo, que era dono de uma loja de importação de peças de automóveis, e os seus amigos – muitos deles ligados aos carros – quando iam mudar o óleo do carro, diziam que iam “mudar a valvolina”. Isto é que é ser uma marca, mas só na sua categoria (como expressava o Hélder).
E porquê só na sua categoria? É que à minha avó Mariazinha, casada com o meu avô Alfredo, nem sequer lhe passava pela cabeça o que seria “mudar a valvolina”. Mas não pensem que só a minha avó é que estava a leste disso. Se perguntarem à Catarina Nunes, diretora deste jornal, jamais lhe ocorreria o que seria mudar a valvolina, sem ter lido este texto.
Assim, para o Hélder parecia, num primeiro momento, que marcas globais seriam marcas reconhecidas por todos na sua categoria.
2. Mas, a seguir, o Hélder escreveu: “são reconhecidas por todos”.
Ao dizer isto, o Hélder deslocou o seu conceito de marcas globais, de marcas notórias, para marcas de prestígio. Afinal, marcas globais já não eram só marcas conhecidas na sua categoria, mas tinham de ser conhecidas por todos.
Isto é, são marcas que não estão sujeitas ao que se chama o princípio da especialidade: não possuem proteção apenas no seu ramo de atuação (a sua classe de marcas e que o Hélder designou de categoria), mas gozam de maior proteção legal, porque são reconhecidas não só do público conhecedor desse mercado, mas também do público em geral.
E a conclusão sobre a identificação do conceito de marcas globais às marcas de prestígio parece resultar dos exemplos dados pelo Hélder. Toda a gente conhece as marcas que ele deu como exemplos: Apple, Microsoft, Google, Coca-Cola, Visa, Volvo, Chanel e Adidas.
Nós, juristas, podemos ser tortuosos: apesar de o CPI ter um artigo com a epígrafe de ‘marcas de prestígio’ (art.º 235.º), este artigo não a define. O conceito da mesma parece apenas resultar do art.º 249.º, n.º, 1, al. c), do CPI, ao ter a seguinte frase: “esse sinal for idêntico ou semelhante à marca e for usado em relação a produtos ou serviços abrangidos ou não pelo registo, caso a marca goze de prestígio”.
Quer isto dizer que muito do conceito de marca de prestígio (e já agora, também do conceito de marca notória) vem da doutrina (dos académicos que escrevem sobre propriedade industrial) e também da jurisprudência (das sentenças e acórdãos dos tribunais).
E muita da doutrina acrescenta alguns critérios para o conceito de marca de prestígio, como deverem de ser marcas percecionadas como tendo uma certa qualidade ou exclusividade, ou com história ou tradição, etc.
Entendo que estes critérios são espúrios de sentido e que uma marca é de prestígio e objeto de proteção total assim o seja conhecida por todos: não é necessário ser a Bentley, a Mercedes (já agora, a marca Mercedes não é Mercedes, mas Mercedes-Benz), pode ser também a Renault ou, dentro de muito poucos anos, a BYD.
3. Até aqui tudo bem com os argumentos do Hélder, segundo a lei. Mas não contente com isso, o Hélder é absolutamente inovador na criação de um novo conceito de marca, ao considerar que as marcas globais são reconhecidas, “não só pelos seus produtos, mas também pelos seus valores e posicionamento”.
E aqui está um novo requisito que, para o Hélder, é materialmente relevante para fazer com que uma marca atinja o Olimpo de ser uma marca global.
Nenhuma lei portuguesa, tratado internacional ou convenções, doutrina ou jurisprudência (de que tenha conhecimento) pensaram nisso como um critério consistente para constar do conceito quer de marca notória, quer de marca de prestígio.
E, por isso, ‘chapeau’, Hélder, faz sentido, segundo a sua teoria, esse conceito de marca global, que extravasa o conceito de marca de prestígio.
Tenhamos apenas presente que este critério dos valores e posicionamento é um critério adicional aos demais e, portanto, atingir este patamar de marca é mais exigente do que atingir o grau de marca de prestígio.
A marca global passa, pois, a ser o Graal das marcas.
E nem se diga que este conceito de posicionamento e valores é difícil de aceitar, por ser indeterminado. O ordenamento jurídico convive em muitas leis com conceitos indeterminados.
Aquele de que mais gosto é uma bíblia e está no Código Civil, o de “prazo que for razoavelmente fixado”, do n.º 1 do art.º 808.º (“Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”).
Vamos, pois, todos consagrar um novo conceito de marca global. A grande dificuldade, para nós, do mundo do direito, será: que proteção adicional à proteção já existente nas marcas de prestígio é que vamos dar às marcas globais? Que direitos adicionais é que podem ter em relação as marcas de prestígio?
Mas isso, alguém irá inventar e até pode ser um diretor criativo de design de marca ou outra pessoa que não um jurista. É fundamental o diálogo entre áreas de mercado, a sociedade e o mundo que vive na terra e o direito. E até podem ser aqueles fora da área do direito a ditar a necessidade de novos conceitos legais.
