A designaria
Vagamente irritado com esta preponderância do estilo em detrimento da função, levanto os olhos do menu

Restaurante ‘com conceito’. Vim pela arquitetura, decoração e design, e já agora pela comida. Estou sozinho para apreciar o espaço com tempo e sem ter de fazer conversa. Enfadonha ou interessante, a companhia exige sempre alguma atenção, nem que seja por cortesia. Fico contente ao ver que não há mais clientes, tirando uma pessoa na zona dos lavabos.
Sou recebido por um jovem muito prestável e muito falador. Chama-me a atenção o seu bigode tipo lápis, fininho como a sua voz, tremelicando enquanto me explica que “o nosso conceito é a partilha”.
Agradeço a informação, ressalvando que, mesmo que quisesse partilhar, não teria com quem, a não ser ele, mas nesse caso teríamos de partilhar também a conta. O jovem sorri e, dada a vasta oferta de mesas disponíveis, deixa-me escolher à vontade.
Opto por aquela que me parece o melhor ponto de observação, sem reparar que fica mais perto das instalações sanitárias do que seria desejável. Ainda pondero mudar, mas, tendo já desfeito o elaborado arranjo criado com o guardanapo de pano, decido ficar.
Nesta altura volto a reparar na pessoa na zona dos lavabos: continua a olhar para as duas portas dos compartimentos privados. Não dou grande importância. Estou mais interessado na iluminação baixa da sala. que deixa tudo numa penumbra de plateia e faz da cozinha exposta uma espécie de palco iluminado.
Leio a ementa com dificuldade. Além da luz fraca, o próprio menu também não ajuda. O tipo de letra é mais pictórico do que textual, os caracteres parecem mais símbolos do que letras, e o conteúdo complica ainda mais: os nomes dos pratos são criativos, divertidos, inteligentes, em vez de meramente descritivos ou informativos. Percebo porquê: isso seria simplório, sem conceito, demasiado básico para um sítio destes.
Vagamente irritado com esta preponderância do estilo em detrimento da função, levanto os olhos do menu e noto que a pessoa dos lavabos continua no mesmo sítio e na mesma posição.
Quando a vi pela segunda vez, pareceu-me estar à espera que a sua casa de banho vagasse, mas já passou um bocado, não saiu ninguém e ela continua ali, de olhar fixo nas portas, dir-se-ia que alternadamente. Julgo notar um leve virar de cabeça de uma para outra. Será? Estará com dúvidas sobre a sua porta?
A questão interessa-me. Ponho-me a observar a pessoa descaradamente, sem medo de ser apanhado a olhar. Encontro nela sinais de inquietação, talvez nervosismo. Noto que passa a mão pelo cabelo com força e que abana a cabeça em sinal de enfado ou talvez de impaciência. Está aflita, parece-me, mas não aquela aflição fisiológica. Não junta os joelhos, não se encolhe, não faz caretas. Suspira.
A aflição é mais psicológica do que fisiológica. É de alguém atormentado por dilemas, dúvidas, decisões que não podem ser adiadas, perguntas que exigem respostas. Qual é a minha porta? Qual é o meu lugar no mundo? Escolhi a porta errada toda a vida? É altura de escolher a outra? Poderei voltar atrás? Posso ficar com as duas? Quem sou eu? O que faço aqui? Para onde vou? De onde venho?
Ou então, como diz muito baixinho a pessoa quando repara em mim:
— Sabe dizer-me qual é a minha porta?
A pergunta deixa-me atónito, gago. Não vinha preparado para dar orientações destas a ninguém, muito menos a um estranho, ou estranha, ou estranhe, e ainda por cima tendo como única base de decisão a brevíssima observação do seu aspeto e dos seus jeitos, os quais, como sabemos, não querem dizer nada, ou, pelo menos, não querem dizer tudo.
— Aquilo não se percebe…
Acrescenta a pessoa, ao ver que eu não dizia nada, e só então eu alcanço a verdadeira dimensão da questão. Levanto-me, vou até ao vestíbulo da casa de banho com ela e deparo-me com a enésima variação do boneco com saia para elas, boneco com calça para eles.
Depois do lacinho em cima da cabeça e lacinho por baixo da cabeça, depois do bigode à Poirot e lábios à Marylin, do chapéu ‘belle époque’ e do panamá à detetive privado, depois do menino a urinar de pé e da menina a urinar sentada, depois do cálice de Martini com azeitona gigante e do cálice de Martini de pé para o ar com azeitona gigante, depois de todos estes e muitos outros, dou de caras com um ponto exclamação numa porta e um ponto de exclamação invertido na outra.
Ficamos os dois com cara de interrogação e chamamos o empregado para nos explicar o conceito.