Tal como Pandora, não vamos resistir

João Paulo Luz, diretor de negócios digitais e publishing da Impresa
Muita da discussão que hoje se faz sobre a inteligência artificial não é nova. As inovações tecnológicas sempre despertaram alguns receios de substituição do homem pelas máquinas, num misto de vantagens e perigos anunciados.
A descoberta da pólvora, provavelmente na China, no século IX, veio a ser explorada na guerra no século seguinte. O motor a vapor, ou o motor a combustão, são outros bons exemplos que impulsionaram significativamente o desenvolvimento das sociedades mas que também trouxeram perigos com eles. Pensarmos hoje que se chegou a pensar proibir o automóvel porque poderia causar mortes parece-nos absurdo, não por não se ter revelado verdadeiro, mas apenas porque entendemos que o benefício o justifica.
Outras inovações, como o telefone, levantaram dúvidas sobre o impacto na forma como nos relacionamos. Se as capacidades de nos aproximarmos eram evidentes, também se receava que as relações saíssem prejudicadas por passarmos a fazê-lo à distância em vez de nos visitarmos. Quando lemos sobre isso é surpreendente o paralelismo com as discussões de hoje com as redes sociais.
Se quisermos identificar uma linha comum diremos que todas as inovações encerravam perigos se as dirigíssemos a favor do mal ou se as utilizássemos em excesso e em total substituição de outras práticas consideradas mais saudáveis. Mas, se a maioria apenas permitia aumentos de eficiência na realização de tarefas que anteriormente se realizavam manualmente, já algumas implicavam impactos na forma como nos relacionamos e até pensamos, como a calculadora e o computador pessoal.
No entanto, o conceito de inteligência artificial adiciona algo de novo. O receio de as máquinas poderem espontaneamente ir mais além do que o fim para o qual foram pensadas por nós, ganha pela primeira vez tração fora da ficção dos livros e dos filmes.
A ideia de que se está a abrir uma caixa de Pandora, em que, segundo a mitologia grega, a curiosidade venceu o receio e levou Pandora a abrir a caixa e a espalhar todos os males sem possibilidade de os voltar a fechar, ganha adeptos e já levou à proibição do ChatGPT em Itália.
Uma das coisas que mais facilmente nos impressiona nestas novas ferramentas é a perceção de que conseguem criar. Quando pesquisamos no Google aumentamos o nosso conhecimento sobre o tema mas temos que ser nós a relacionar as várias fontes e a articular uma ideia final somando os contributos das várias peças. Com o ChatGPT conseguimos obter textos prontos a consumir que relacionam essas peças por vezes melhor do que nós o faríamos. A sensação de geração de opinião é quase real e é muito impressionante.
Claro que estas capacidades, se mal dirigidas, terão um potencial efeito na geração de opiniões e, por consequência, nos nossos regimes democráticos, que nos deverão fazer pensar. Mas todos sabemos que a proibição só tornará mais obscura e menos regulada a sua evolução, pelo que teremos que encontrar outras formas de atuar.
Os impactos no trabalho serão imensos mas a história mostra-nos que, como se substituem funções humanas por máquinas, também outras irão aparecer. A tendência de eliminar as tarefas menos qualificadas sempre foi boa e será o que poderá permitir trabalharmos menos horas, algo muito discutido nesta era pós-pandémica.
Pelo que nos é conhecido ainda não estamos na iminência de as máquinas conseguirem ganhar vontade própria. Esse é o receio que justifica a imagem da caixa de Pandora e que já Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke ficcionavam em “2001 Odisseia no Espaço”, que é extraordinariamente atual embora realizado em 1968. Está lá quase tudo o que hoje discutimos e, se estes desafios já se anunciavam há mais de 50 anos, não nos devem surpreender todas as nossas hesitações com o tema.
Que as máquinas nos são superiores em força, em velocidade de cálculo, em memória e em quase tudo o que serve para nos auxiliar é conhecido de todos nós. A ideia de que podemos perder o controlo de as dirigir totalmente é que nos assusta e é isso que merece a nossa atenção. No podcast do Expresso da Manhã, o professor Arlindo Oliveira, do IST, desmontava o preconceito de que as máquinas não têm sentimentos, recordando que a maior parte deles resulta de consequências racionais à ocorrência de alguns factos. Muito mais impressionante é a sua afirmação de que talvez tenhamos que nos habituar à ideia de que não seremos os únicos seres inteligentes no planeta.
Se os adjetivos de fascinante e assustador são talvez os que mais depressa nos ocorrem, deveremos manter o otimismo de que vamos conseguir regular este enorme potencial. Já demonstrámos ser capazes de o fazer, por exemplo, com a energia nuclear, que nos poderia levar à extinção. Aqui não parece ter o mesmo dramatismo imediato, pelo que deveremos focar-nos em regular e nunca em proibir.
Artigo de opinião assinado por João Paulo Luz, diretor de negócios digitais e publishing da Impresa