Talvez

Por a 11 de Agosto de 2022

Vítor Cunha, administrador da JLM&A

Gosto de estar do lado daqueles que defendem a liberdade. Sabemos que muitas vezes a complexidade dos temas e o dilema dos meios e dos fins convocam atropelos e a linearidade fragmenta-se. Em tempo de guerra este tipo de problema acentua-se: a “verdade” é parte de um sistema de informação cuja ética interna apenas se relaciona com o interesse em ganhar, ou não perder.

Temos assistido nos últimos meses a manifestações diversas desta inevitabilidade. Ninguém devia ficar surpreendido: em combate a mentira e a dissimulação são armas poderosas. A II Guerra Mundial não teria sido ganha pelos Aliados se a máquina de propaganda e de contrainformação não tivesse funcionado bem. Os alemães foram confundidos com informações falsas, emissões rádio fantasma, telefonemas, simulações, entre outras artimanhas, quanto ao local de desembarque em território europeu (o famoso Dia D). Nos tempos mais recentes as potências com maiores recursos mantêm sistemas de informação para difundir os seus interesses na televisão ou nas redes sociais. Putin e Lavrov são atores bem treinados e o script usado é pensado e profissional.

Causou-me um certo espanto que neste ambiente contaminado a embaixada da Rússia em Portugal tivesse reagido a um concerto de Pedro Abrunhosa.

Para quem não acompanhou a história, cito a Lusa:

Durante um concerto em Águeda, Pedro Abrunhosa falou sobre a guerra na Ucrânia, antes de começar a cantar o tema “Talvez Foder”, no qual aborda questões como a guerra, a fome e o fascismo.

O músico lembrou que “há quem não fuja, e numa ilha da Ucrânia um marinheiro respondeu a um apelo de um barco russo dizendo: ‘Barco russo, go fuck yourself’, que é como quem diz ‘russian boat …’, que é como quem diz ‘Vladimir Putin, go fuck yourself’”.

“Este grito hoje tem que se ouvir em Moscovo e em Kiev”, disse.

A Embaixada da Federação Russa publicou esta semana, no seu ‘site’, um “comentário”, motivado pelas “declarações inaceitáveis do cantor Pedro Abrunhosa.

“Durante o concerto no festival AgitÁgueda 2022 ele permitiu-se dizer várias coisas grosseiras e inaceitáveis sobre os cidadãos da Federação da Rússia, bem como os seus mais altos dirigentes. Além disso, Pedro Abrunhosa incentivava em êxtase os espectadores, entre os quais os russos que também pagaram os bilhetes, que repetissem o que estava a gritar, tendo no final expressado o desejo que as palavras dele fossem ouvidas em Moscovo”, relata a embaixada.

No comunicado, a embaixada refere ainda que os “gritos vergonhosos” de Pedro Abrunhosa “enquadram-se em mais de que um artigo da legislação penal portuguesa, sendo que neste contexto informámos através dos canais diplomáticos os órgãos competentes de aplicação da lei”.

“A Embaixada da Rússia continua a vigiar os interesses dos cidadãos russos residentes em Portugal, e nenhumas provocações ignóbeis contra eles ficarão sem resposta”, conclui.

O que se passará na cabeça tonta dos responsáveis russos em Portugal?

Antigamente no KGB ensinavam o que fazer e o que não fazer. O ditador russo aprendeu tudo, mas os seus servos residentes na Rua Visconde de Santarém, em Lisboa, não aprenderam nada. A sabujice ao Chefe, a imbecilidade da argumentação, a escusada publicidade, transformam Abrunhosa numa agradável figura, coisa que até à noite daquele concerto estava por demonstrar.

E tudo isto para falar de comunicação em tempo de “operação especial”: a fatura da guerra está a chegar ao Ocidente. As opiniões públicas e alguns governos dão sinais preocupantes de medo. A atomização europeia, as lideranças enfraquecidas, a inflação, a falta de convicção e incapacidade de sofrimento poderão levar à “vitória” russa.
Não se imagina que tipo de comunicação e que comunicadores poderão salvar o mundo que conhecemos. A tempestade perfeita está aí por perto e não se vislumbra saída. Caminhamos mansamente para um buraco onde seremos vítimas da nossa passividade ziguezagueante. Na falta de políticos e política, talvez os “gritos vergonhosos” de Pedro Abrunhosa desconcertem o inimigo. Talvez.

Artigo de opinião de Vítor Cunha, administrador da JLM & Associados

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