A internet está morta ou alimentada por mortos vivos?

Ricardo Tomé, director coordenador da Media Capital Digital
Se procurarem por “teoria da internet morta” irão certamente encontrar centenas de artigos recentes a divagar, aprofundar, teorizar e aprofundar o tema (aconselho a pesquisa em inglês, contudo). E não falo apenas dos que nada têm para fazer e aqui encontram um passatempo. Falo de artigos noticiosos para além das teorias da conspiração do costume, de publicações de renome e autores versados. Mas do que se trata afinal?
Em resumo, serve a teoria para alertar que a internet morreu há alguns anos, algures em meados da década de 10 do presente século (os mais precisos advogam 2016 ou 2017), sendo sinal da representação da morte o facto da a maior parte dos conteúdos hoje gerados o serem por via de sistemas de inteligência artificial e por bots. Ou seja, a probabilidade de ter acabado de interagir com um tweet que afinal é uma máquina e não uma pessoa… é grande. E o que dizer do perfil do Instagram que segue e acha inspirador? Já para não comentar essa “pessoa” que o/a tem atraído com conversas tão curiosas no Tinder…
Isso.
Quem lhe pode provar que essas publicações são “reais”, humanas, geradas por um ser dotado de consciência e não por uma máquina? Nalguns casos o tema resolve-se facilmente. Aliás, no Twitter torna-se evidente ao ponto de a própria empresa estar a avançar com uma iconografia que assinala isso mesmo, quando um perfil se trata de um bot (ro”bot”) que gera interacções, angaria seguidores e publica posts orientado por máquinas e não por um qualquer Sr. João a viver num apartamento algures no planeta.
Claro que daqui podemos derivar para uma alucinação. Somos capazes de começar a desconfiar de tudo. Até daqueles “updates” no Spotify que dizem que aquelas pessoas ouvem aquelas músicas – e se forem afinal criações para nos enviesar as escolhas e empurram um qualquer single pela tabela das mais ouvidas acima?
Calma.
Vamos dividir o tema em duas partes (pelo menos). Numa primeira, convém distinguir o que é produzido do que é promovido/partilhado. Claramente o território fértil desta propagação está sobretudo assente nesta segunda parte. Mais do que a miríade de conteúdos gerados, importa que alguns cheguem às massas; é aí que grande parte destas empresas (ao serviço de sistemas políticos, negócios e outros menos dignos de ser sequer enumerados) se focam. Portanto, aquilo que vemos não é uma percentagem correcta do que é criado, mas sim uma pequena fracção que consegue ascender e ser colocada nos feeds por uma complexa teia de contas falsas que entre si interagem, ludibriando os algoritmos de recomendação e com isso fazendo ser mostrado o que deveria ter sido ocultado. Assim se manipula a opinião pública.
Mas querer generalizar estas acções considerando que toda a internet é maioritariamente feita de conteúdos gerados por máquinas (incluindo as conversações nos comentários) parece-me um cenário, à data de hoje, verdadeiramente exagerado e mais próprio de um qualquer grupo no Reddit dedicado à visão futurista e decadente da internet, mais do que à prova realista dos factos de hoje. Não digo que não venha a ser. Mas dificilmente creio que o é nos dias que vivemos.
O ponto que me parece pertinente, contudo, é sensibilizar a população para o facto de que os conteúdos e as interacções geradas por bots são reais, vieram para ficar, não são um fogo fátuo do presente e – sim – irão crescer nas próximas décadas ao ponto de as termos como absolutamente “naturais” no ecossistema, vindo a ser natural conversarmos com bots sobre o nosso dia no trabalho ou a pedir conselhos sobre o filme a ver mais logo ou sobre se devemos ou não aceitar aquele convite para jantar, qual recriação do “Her” de Spike Jonze, onde Joaquin Phoenix se enamorava por um sistema operativo.
Daí que a confiança por uma parte da população em websites onde declaradamente há pessoas a fazer a produção e a escolha dos conteúdos (como por exemplo websites de notícias de empresas de media) seja cada vez maior e haja quem pague para apenas neles se socorrer, em detrimento de sistemas “modernos” com feeds elaborados por algoritmos.
A teoria da internet morta pode não ser inteiramente verdade, mas também não é mentira que parte do que vemos online é obra de criaturas alimentadas a electricidade, linhas de código, servidores e uma ligação à internet. Ah, e uma qualquer entidade empresarial por trás. Pois que razões movem essas empresas para criar estas fábricas de bots que geram estas torrentes de interacções e de conteúdos? É que não me recordo de ver tamanhos esforços serem empregues para um qualquer objectivo benemérito. Afinal, para fazer isto é necessário muito dinheiro para pagar as contas de programadores e máquinas. E sabemos todos que não há almoços grátis.
Artigo de opinião de Ricardo Tomé, director coordenador da Media Capital Digital