Lebres e tartarugas

Vítor Cunha, administrador da JLM&Associados
Em mais um novo arranque do mundo e da vida tudo é condicional, como a própria vida. Fazem-se balanços às mudanças e impactos nos nosso hábitos e formas de enfrentar os demónios que o vírus trouxe. A vacina é a falsa ilusão do regresso ao “normal”. O remédio tarda e não vem – e não queremos admitir que o mal nunca termina: a doença faz parte de nós, a ciência é instrumento e não milagre eterno.
Mas a incerteza não é só caos: é também sal que alimenta a vontade de não parar e de viver em descoberta.
A velocidade é um dos elementos deste mundo e as empresas sentem-na mais do que outras comunidades, como as famílias, ou os próprios indivíduos.
Era eu um pobre imberbe com alguma barba quando ouvi falar pela primeira vez de “aceleração histórica”. Na altura o Spectrum 48K começava a fazer furor e nos carros ouvia-se música em cassete. Na semana que passou reparei que já poucos usam as pen USB e a cloud é a popstar do momento. Antes disso largámos as ditas cassetes (também usadas para gravar programas do Spectrum), as disquetes, o CD e o DVD. Na saudosa série Space: 1999 as portas abriam-se com um cartão magnético e hoje até os hotéis já estão a usar outro tipo de tecnologia (mais avançada, claro) para entrarmos nos quartos. O QR code ainda serve para atestar a nossa sanidade vírica, mas é crível que venha a ser substituído por outras maravilhas ainda antes de ser encontrado remédio definitivo para a covid-19.
[Estes pequenos exemplos dão-nos alegria e exultam a nossa fé: talvez seja possível ainda viver o dia em o que O Preço Certo termine, que as obras do Metro de Lisboa e a auto-estrada Coimbra-Viseu se concluam, ou mesmo que os políticos decidam lançar o aeroporto do Montijo — tudo domínios onde se tem refutado de forma coerente a teoria geral da aceleração histórica].
Uma das questões que tem atormentado gestores e quadros é o modelo de organização do trabalho a partir de Setembro e o tema já não é apenas a covid, mas a adaptação às mudanças psicossociais que o confinamento gerou.
A pandemia trouxe uma confirmação que ninguém queria aceitar: em muitos casos é possível trabalhar à distância sem perda de qualidade dos serviços prestados e com ganhos na qualidade de vida do prestador. A opção de trabalho híbrido nas empresas vai passar a ser um fringe benefit e um factor de atracção e diferenciação. Vai também aumentar a concorrência entre sector público e privado.
O Estado não soube aproveitar o momento e levar longe a disrupção que os privados aceitaram e se preparam para continuar. São conhecidos muitos casos de serviços públicos paralisados durante meses. Alguns funcionários não puderam trabalhar em casa por falta de condições mínimas; e dos que tinham essas condições nem todos as quiseram aproveitar. Certo é que muitas autarquias pararam meses, escolas e universidades não davam resposta a pedidos simples e nem os telefones atendiam, a renovação de um passaporte passou a ser ainda mais difícil, e uma licença camarária só se obtinha por acto de bruxaria. Em contrapartida, o vírus iluminou o burocrata, que assim descobriu que se pode substituir o Cartão de Cidadão por SMS. No entretanto, o sector privado ajustou-se e trabalhou sempre que o governo deixou.
Na verdade, esta devia ter sido uma grande oportunidade para o Estado levar até ao limite as mudanças que a tecnologia permite e poder passar a oferecer melhores serviços e melhor qualidade de vida aos seus funcionários. O único fringe benefit do funcionário público é a segurança, mas a segurança não compensa uma vida de miséria, salários baixos e perspectivas ainda mais baixas.
O tempo vai acentuar as fragilidades do Estado como patrão e gestor. Dados recentes contam mais de 731 mil funcionários ao serviço, e a subir. Mas a função pública atrai menos do que a função privada e há muitos procedimentos de contratação de pessoal que ficam desertos, outros demoram anos a terminar. Ao mesmo tempo continuamos a assistir a fenómenos incompreensíveis como a colocação dos nómadas profissionais, também conhecidos como professores.
A aceleração e a agilidade do mundo deviam ser interpretadas por quem gere o Estado de forma a promover o próprio Estado: mais adaptado à realidade, que trate bem os seus e não confirme nos outros (nós) a ideia de que os impostos são desperdício.
Artigo de opinião de Vítor Cunha, administrador da JLM & Associados