“O tipo de mensagem do Chega e dos sites de desinformação é muito semelhante”
O jornalista Paulo Pena tem publicado no Diário de Notícias várias investigações sobre o mecanismo e impacto das fake news e da desinformação em Portugal. O seu mais recente livro Fábrica de Mentiras: Viagem ao Mundo das Fake News mostra como a desinformação está já instalada. Tratam-se de 40 sites que têm um alcance mínimo de 2,5 milhões de portugueses. “Estes sites têm mecanismos muito profissionais de atingir as suas audiências, como a utilização de bots, soluções informáticas para a disseminação através de perfis falsos ou a criação de páginas de grupos no Facebook”, refere.
Meios & Publicidade (M&P): Que relação existe entre o Chega e estes sites de desinformação? Existem pontos de contacto?
Paulo Pena (PP): O tipo de mensagem é muito semelhante. Há duas distinções básicas. Uma delas já conseguimos estudar com o apoio do MediaLab do ISCTE, em que o tema mais usado pelas fake news é o da corrupção. Nos outros países europeus tem a ver com refugiados, minorias, questões ligadas à etnicidade e raça. Em Portugal a corrupção é o grande tema. Outra coisa que se vê a olho nu é que estes sites de desinformação passam uma imagem do país distorcida e falsa. Somos o terceiro país mais seguro do mundo, atrás da Islândia e Nova Zelândia. Abrindo os sites de desinformação vemos crimes a toda a hora. Um destes sites que usurpa a identidade dos bombeiros, o Bombeiros 24, está sempre a publicar crimes. Não estou a dizer que todas essas notícias sejam falsas ou inventadas, mas fica-se com a ideia de que o país está inundado de crimes. O Chega aproveita o discurso de pânico desses sites.
M&P: A área de influência dos sites de desinformação é a da extrema-direita?
PP: Isso já foi estudado pela Universidade de Oxford. A extrema-direita tem mais capacidade em aproveitar o alcance das redes sociais e das grandes plataformas. Basta ver como o Vox, partido recém-criado e sem base de apoio social, rapidamente se tornou no mais comentado nas redes sociais em Espanha. As pessoas diziam bem e mal, mas o facto de estarem sempre a falar dele, provocou uma ascensão na notoriedade. Isto também coloca as redacções em cheque. Se as pessoas abrem o seu Facebook e vêem 20 posts sobre o Chega acham que esse é o tema do momento. Isto também distorce a importância dos assuntos.
M&P: Os autores destes sites têm como objectivo a influência política ou querem é monetizar e ganhar milhares de euros por mês?
PP: É mais evidente a tentativa de ganhar dinheiro, embora em alguns casos seja notória a tentativa de ganhar dinheiro para financiar um projecto político. Estes sites são rentáveis porque facilmente duas pessoas conseguem criar 40 perfis numa rede social. Estes 40 perfis disseminam uma história qualquer por páginas e grupos no Facebook. Ao fim do dia, essa história chegou a milhares de pessoas. Com esses milhares de cliques os autores estão a receber o valor do contrato publicitário que o Google lhes paga. É um negócio muito rentável. Fizemos as contas a um destes sites, que nem sequer era feito em Portugal, era feito por uma empresa de marketing do Canadá que tinha sites noutras línguas. Chama-se Vamos lá Portugal e, contas feitas por baixo, facturava em publicidade pelo menos 10 mil euros por mês. Uma ou duas pessoas devem trabalhar lá.
M&P: Trata-se de dinheiro de anunciantes portugueses…
PP: Ou de cadeias como a Amazon.
M&P: Ao mesmo tempo vemos o Google e o Facebook a financiar projectos de fact checking. Como vê este duplo comportamento?
PP: Entrevistei uma fact checker americana que me disse uma frase que resume bem: a contratação de fact checkers por parte do Facebook é uma manobra de relações públicas. É uma forma de o Facebook tentar explicar às pessoas que está a tentar conter o problema da desinformação. Na análise que temos feito com o MediaLab do ISCTE uma das coisas que percebemos é que 90 por cento da desinformação ou das fake news transmitidas em Portugal não é de sites que produzem fake news que depois usam as redes sociais para as disseminar. São produzidas dentro do Facebook e isso está fora do mandato dos fact checkers. Significa que os fact checkers, mesmo sendo eficazes na sua tarefa, só conseguem lidar com 10 por cento do problema.
M&P: O que virá a seguir? Maior consciencialização da opinião pública para estes temas? Intervenção do Estado? O Facebook e o Google serão cada vez mais poderosos?
PP: Creio que é a última hipótese. Está a ser recolhida muita informação sobre nós, que está a ser usada para fins comerciais por parte do Google e do Facebook. Se vou ao Google procurar informações sobre dores de cabeça, o Google fica a saber que eu estou com dores de cabeça. Devia haver regras sobre a utilização que pode ser feita sobre a minha informação de saúde ou da minha informação sobre preferências políticas, religiosas ou sexuais. Tudo isto está a ser usado para a publicidade comportamental. Este é o grande negócio do futuro. Já lhe chamaram o novo petróleo. A utilização dos nossos dados privados para o negócio publicitário é um risco para a nossa democracia. A nossa privacidade está a ser usada para definir perfis para vender segmentações irrealistas e muitas vezes erradas porque são baseadas no que procuramos ou desejamos. Tudo isso tem um efeito na nossa democracia. Não é uma coincidência tenebrosa a forma como foram eleitos Donald Trump, Bolsonaro, Boris Johnson, Duterte ou o presidente da Índia. Não é coincidência que os partidos de extrema-direita estejam a crescer ao mesmo tempo na Europa. Há explicações que vão da crise económica à crise dos refugiados, mas há uma explicação que é evidente: estas plataformas são uma forma fácil de acesso de pequenos grupos, muitas vezes a agir fora da lei, para aumentar a sua presença política. O efeito não é apenas político. A publicidade coloca outro tipo de problemas. O The New York Times denunciou que o Facebook faz discriminação na forma como anuncia vendas de casas entre grupos étnicos. Esta forma de segmentação tem o efeito de nos tornar menos abertos à diferença e ao diálogo com as pessoas.
Leia a entrevista completa a Paulo Pena publicada na edição 853 do M&P