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Opinião

Os Rótulos da Diretora

Estamos em casa da diretora criativa de uma agência de publicidade num sábado à tarde.

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Os Rótulos da Diretora

Estamos em casa da diretora criativa de uma agência de publicidade num sábado à tarde.

Marco Pacheco
Sobre o autor
Marco Pacheco

O redator e o diretor de arte que agora tocam à campainha são a primeira dupla criativa que é convidada a trabalhar ali com ela, não por serem melhores ou mais importantes do que os colegas, mas porque o prazo daquela grande campanha está a terminar e aquele fim de semana é a vez de a chefe divorciada ficar com a sua filha bebé.

Mal entram na sala, os dois criativos notam a enorme vitrine de vidro fosco preenchida por uma farta e variada garrafeira. É difícil aos criativos tirarem de lá os olhos, o móvel é imponente, magnético, parece ter sido feito à medida para o lugar e, de certa forma, carrega em si um contradição fascinante: se, por um lado, está na sala é porque é para ser visto, a diretora não tem vergonha de mostrar às visitas o seu grande apreço pela matéria; só que, ao mesmo tempo, o vidro é fosco, esconde o interior, deixa adivinhar apenas formas vagas, que parecem garrafas, sim, mas não se percebe bem de quê, estão desfocadas, nem sequer se percebe se são de vinho ou de bebidas brancas.

Podiam ser, por exemplo, águas minerais de todo o mundo, já se viram coleções mais estranhas. Seja como for, são garrafas e isso basta para os criativos trocarem um olhar cúmplice pois sabem bem o que aquela descoberta significa para um rumor que circula na agência há algum tempo. Na próxima segunda-feira já contam tudo aos colegas num daqueles almoços onde, talvez para desenjoar de terem de dizer bem o dia inteiro de produtos que não apreciam, os criativos aproveitam para dizer mal de colegas de que não gostam, geralmente superiores hierárquicos, como é o caso desta diretora criativa, a única mulher em todo o departamento.

Entre o muito que se diz dela nesses repastos exclusivamente masculinos, há quem a acuse de pensar como uma account, ou, pior ainda, como um cliente, rótulos que na língua dos criativos designam gente quadrada, chata e muito pouco inspiradora. Na opinião daquele prandial pelotão de fuzilamento, a chefe é incapaz de aprovar uma ideia um pouco mais arriscada, o que ela gosta é de jingles orelhudos, trocadilhos fáceis e jogadores de futebol em roupa interior — e presidentes, já agora — acrescentam alguns, convencidos de que a sua recente promoção se deveu mais a atributos físicos do que a qualidades intelectuais. Nada falta na ementa destes impiedosos banquetes, nem sequer a indumentária demasiado formal para o cargo. Chamam-lhe advogada em dia de julgamento, primeira-dama, embaixadora, velhinha trintona.

Como é que alguém assim quer ser respeitado pela excêntrica e irreverente turba criativa? Jamais. Se fosse menos quadrada no trabalho, até lhe perdoavam aqueles vestidos com enchumaços nos ombros à executiva dos anos oitenta, mas assim não, assim a chumbar ideias fora da caixa (a que ela chama fora do brief) não dá. E o pior é que ela insiste sempre que é possível fazer bom trabalho respondendo ao pedido do cliente, mesmo quando ele é vago, confuso, contraditório ou demasiado ambicioso para o orçamento e para o tempo disponível.

— Até quem não sabe o que quer pode ser uma inspiração.

Diz ela muitas vezes, e disse-o uma vez mais quando a dupla que agora está em sua casa se queixou, uma vez mais, de que o brief daquela campanha não dava para fazer nada de jeito. A diretora respirou fundo. Estava saturada de ouvir aquela desculpa e tudo o que ela implicava: que os colegas accounts aceitavam o que os clientes pediam sem filtrar nada, que os colegas da estratégia não sabiam tornar os briefs inspiradores, que a direção criativa permitia tudo isso, e que, em última instância, a culpa do mau trabalho era sempre do cliente, como aqueles treinadores que responsabilizam o estado do terreno, as lesões ou o árbitro pela derrota.

De modo que, tirando partido da dificuldade que era ter de trabalhar em casa naquele fim de semana num tempo em que as calls ainda não eram opção, a diretora decidiu aproveitar aquele trabalho para dar à dupla um exemplo que, quiçá, fosse um dia tema de conversa num daqueles almoços onde ela era vorazmente triturada.

Depois de avisar os criativos do bebé a dormir no quarto e de lhes agradecer terem ido a sua casa, a diretora indica-lhes o sofá, notando, com agrado, o fascínio dos colegas com a generosa garrafeira.
— Bom — diz a anfitriã ainda de pé aos convidados já instalados no sofá — Onde é que nós íamos?
— No briefing que é mau — responde logo um deles, sem meia palavras.
— Ah, claro. Dar ao cliente o que ele quer. Mas antes disso: o que querem beber?
— O que tiveres.
— Eu também.

Ouvindo isto, a diretora pega em dois copos, pousa-os sobre a mesa de centro, tira da grande vitrine duas garrafas e serve os dois colegas. Numa das garrafas o rótulo diz O Que Tiveres e no outro Eu Também, ambos escritos com se fossem marcas de bebidas. Enquanto serve, a diretora diz:
— Aqui têm: um copinho de O Que Tu Tiveres e outro de Eu Também.
Depois de terminar, pousa propositadamente os rótulos de frente para os criativos para que eles possam ler o que lá está, coisa que eles fazem calados, com ar confuso e incrédulo, como se as garrafas fossem objetos estranhos. Pegam nelas, observam os rótulos de perto, notam o impecável tratamento gráfico, olham um para o outro, sorriem e um deles pergunta:
— E se eu tivesse pedido… qualquer coisa forte?
A diretora dirige-se novamente à vitrine e traz de lá uma garrafa onde se lê Qualquer Coisa Forte.
Nesta altura os criativos não conseguem conter uma gargalhada que quase acorda o bebé e fazem, pela primeira vez em muito tempo, um elogio sincero:
— Isto é lindo!

Curiosos, pedem licença para apreciar o restante acervo e descobrem, maravilhados, que todos os pedidos possíveis e imaginários têm o respetivo rótulo: O Que Estiveres a Beber, Nada de Álcool, Deixa-me Ver, Sei lá, Uma Coisa Levezinha, Uma Coisa Suavezinha, Qualquer Cena, Tanto Faz, O Que é Que Tens Aí?, Não Sou Esquisito, Não Sou Esquisita, Escolhe Tu, Isso Agora…, Surpreende-me, O Que Tiveres Aberto, Um Cheirinho, Something Local, Whatever, Gosto de Tudo, Depende, e muitos outros, sempre com um grafismo diferente e muito cuidado, certamente obra da dona, diretora de arte de formação.

Já com todos de volta ao sofá, a diretora serve-se de um pouco de O Que Tiveres, levanta o seu copo e propõe um brinde:
— Às ideias que respondem ao brief.

Crónica de Marco Pacheco, diretor criativo executivo da BBDO e escritor

Sobre o autorMarco Pacheco

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Diretor criativo executivo da BBDO e escritor
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