Ciclone Idai: Não fazemos ideia do que fizemos
“‘Vamos arrancar pra Beira. Enchemos o carro com o que pudermos levar e siga.’ Foi assim que começou, um WhatsApp às 4 da manhã”. Leia o relato impressionante de Pedro Alves, Pedro Froes e Eurico Freitas, sócios da agência grOW de Moçambique
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“Vamos arrancar pra Beira. Enchemos o carro com o que pudermos levar e siga.” Foi assim que começou, um WhatsApp às 4 da manhã.
O ciclone tinha acabado de passar e começámos a perceber o quão dramática estavam a situação. Foi aqui ao lado, estávamos perto demais para não ajudar. Não se falava noutra coisa. Ninguém conseguia trabalhar, nem nós, nem clientes, nem o país. Rapidamente ficou claro para nós que ir de carro era para esquecer, nem dava para lá chegar. Marcámos avião para dois dias depois.
Juntámo-nos ao primeiro movimento de ajuda que apareceu. A missão era encher um navio que ia sair de Maputo com 14.000 toneladas. Vamos embora. Demos o nosso nome e fomos para o porto ajudar a carregar. Dava para sentir a tensão no ar. Tudo aos gritos, muita alma e pouca organização. A ajuda não parava de chegar e os contentores não paravam de se alinhar. Europeus, Africanos, Americanos, Asiáticos, Cristãos, Muçulmanos e Hindus, tudo em fila a carregar caixas que não acabavam. Os rolos de fita não chegavam, os sacos eram poucos, o calor era demais. Pilhas de roupa, mãos a pingar de óleo de fritura, poças de leite no chão… Muita coisa estragada ainda antes de ser carregada. Era impossível parar. Percebemos que apesar da ajuda em Maputo, na Beira ainda não havia ninguém mobilizado para fazer o processo inverso, descarregar e distribuir. Falámos com quem estava a liderar a operação e dissemos que íamos. Estava encontrada a nossa missão.
Configurámos um out-of-office às três pancadas a dizer “ESTAMOS NA BEIRA”, rezámos para que nenhum cliente tivesse coragem de nos despedir, dissemos adeus às nossas famílias e saímos na quinta feira – exactamente uma semana depois da passagem do ciclone. Levávamos uma farmácia completa e excesso de 60kg disto e daquilo, tudo o que precisávamos para sobreviver no Apocalipse Now. Uma hora depois de aterrarmos estávamos a comer caranguejo e a beber uma cerveja num restaurante.
Rezámos para que nenhum cliente tivesse coragem de nos despedir, dissemos adeus às nossas famílias e saímos na quinta feira – exactamente uma semana depois da passagem do ciclone.
Tivemos sorte, fomos muito bem recebidos e a casa onde ficámos tinha gerador. Havia luz uma ou duas horas de manhã e à noite. Havia gasolina, comida e água. não havia dinheiro nos ATM, um poste direito, uma árvore de pé, um telhado completo. Deu para perceber que a cidade foi brutalmente sacudida, mas fora a desgraça visual, a primeira – e superficial – impressão era de que afinal estava tudo bem, a população tinha passado mal mas o cenário já era de reconstrução. Nada mais errado.
Nos primeiros dias estávamos à toa. O navio ainda não tinha chegado e não sabíamos onde começar a ajudar. Começaram a chegar mensagens de pessoas que sabiam que estávamos lá e entregámos comida e água a quem nos disseram que precisava. Conhecíamos um orfanato no interior da província. Fomos até lá e levámos o primeiro choque de realidade. 40 crianças, 40 sorrisos, 1 saco de farinha na dispensa. Tinham comida para mais um dia. Entregámos o que tínhamos connosco, que dava para mais um dia ou dois. No seguinte voltámos lá e comprámos-lhes mais um ou dois dias. Fomos a um hospital ao pé da casa onde estávamos, onde estavam abrigadas 700 famílias. Assim que nos viram entrar houve cerco. Não havia água, medicamentos ou comida. Tudo o que trazíamos – incluindo a dignidade – ficou lá. À medida que íamos conhecendo a cidade e conectando com tudo mais a fundo, mais claramente se via o vulto omnipresente da necessidade. A realidade transformava tudo o que estivemos a fazer até ali num passeio de arborismo.
Fomos até lá e levámos o primeiro choque de realidade. 40 crianças, 40 sorrisos, 1 saco de farinha na dispensa.
Chegou o navio e era preciso pôr a operação a andar. Não nos perguntem como nem quando, mas de repente tínhamos um espaço num parque de contentores, camiões a chegar e braços a ajudar. Tudo acontecia rápido demais para podermos processar, mas o facto é que havia muita gente a querer ajudar, gente que nem chegámos a conhecer. Estávamos divididos em dois grupos: um tratava da burocracia e logística da chegada dos camiões ao parque e outro – em que nós estávamos – coordenava a estiva. Quando os contentores começaram a chegar surgiu a cenário mais incrível: de repente tínhamos 6 ou 7 contentores de 40 pés cheios no parque e mais 7 ou 8 a chegar no dia seguinte e não tínhamos todas organizações a quem doar.
Não havia nenhuma organização encarregue, não havia nenhum big brother solidário que dirigia. Éramos nós. Agarrámo-nos aos telefones – a funcionarem a conta gotas –, encontrámos instituições credíveis, estabelecemos prioridades e mandámos vir. Tragam carros, carrinhas, camiões. Quanto maior melhor. Os quatro dias que se seguiram foram fisicamente os mais duros que já vivemos até hoje.
Em pouco tempo tínhamos uma fila de carrinhas e camiões à espera de serem carregados. Era preciso organizar, coordenar, carregar, contar, rever, fotografar e fazer follow up de cada uma das entregas que eram feitas. “FILA, FILA, FILA!!!!” Perdemos a conta das vezes que gritámos isto por dia. Na rua estavam 40º, dentro dos contentores eram 75º e mal se conseguia respirar. Ao fim das primeiras horas de estiva, já ninguém falava. Já não éramos pessoas, éramos mulas. De carga, e de descarga.
Numa das experiências mais marcantes da viagem, demos por nós a pé no meio da pista de aterragem do aeroporto a fazer slalom entre Boeings e Antonovs (tanto barulho que era quase silêncio) para recolher medicamentos que entregámos de seguida a uma das destemidas organizações sul-africanas que fazia operações de resgate. Olhos a quem a desgraça já sugou toda a emoção dirigiram-nos inesperadas e desnecessárias palavras de agradecimento. “You have no idea what you have done.”
No parque de contentores, ao som do hino nacional cantado a uma só voz, o cheiro a óleo vegetal misturado com suor e leite podre produzia um mix aromático revolucionário e intemporal. Ao saírem com os camiões atestados de esperança de curto prazo, caras cheias de vida e de agradecimento contrastavam com as nossas, empoeiradas, enfarinhadas e envergonhadas.
Passado um dia ou dois começaram a chegar imagens das pessoas a receberem as ajudas. Crianças a perder de vista com pratos cheios à frente, pessoas a exibirem uma gloriosa lata de feijão como se ela lhe trouxesse de volta a casa, a família, a vida. Tudo era especial, nada fazia sentido. De facto, não fazíamos ideia o que estávamos a fazer. Até hoje acho que não fazemos.
Artigo da autoria de Pedro Alves, Pedro Froes e Eurico Freitas, sócios da agência grOW de Maputo
Agradecimentos dos autores:
Aos VAMOZ – Voluntários Anónimos de Moçambique pela força e direcção.
Ao Luís Gama pela hospitalidade.
À ABInBev por ter acreditado em nós, suspendido toda a comunicação de todas as suas marcas e ter doado todo o dinheiro que seria gasto em media.
À Galp Moçambique por nos ter emprestado uma carrinha que nos mudou a vida.
Ao grupo JFS – João Ferreira dos Santos – por ter disponibilizado toda a ajuda logística na Beira.