Tracery é o nome da nova criação automóvel do projeto artístico que une Vhils à Mini, desde 2021. O termo anglo-saxónico, tradicionalmente associado à arquitetura gótica, um estilo marcado por uma decoração ornamental estrutural, é indissociável do rendilhado, conseguido com 30 mil perfurações, que a nova obra de Alexandre Farto revela.
A criação, apresentada no Barreiro, vai ser exibida nos stands nacionais da marca, antes de rumar ao Museu BMW, em Munique. Na sequência da visita que fez a fábrica da marca em Oxford, Vihls elegeu um Mini MkI, de 1965, como a matéria-prima da obra de arte que o Vhils Studio desenvolveu, sob a sua supervisão e em parceria com a Rusty Soul Garage, oficina especializada no restauro de carros clássicos.
“Foi um trabalho longo que envolveu muitas equipas”, reconhece o criativo, que, além de ser um dos impulsionadores da galeria de arte Underdogs e do Festival Iminente, através da Cultural Affairs, organização que fundou, é também um dos novos embaixadores nacionais da Mini, marca do grupo BMW.
O que é que foi mais desafiante nesta nova colaboração com a Mini?
Enquanto artista, tenho um forte impulso para experimentar novas formas de criação. Este projeto proporcionou-me uma oportunidade de inovar, de desenvolver uma nova técnica que criasse um efeito que tinha imaginado durante o processo criativo. No final, talvez tenha sido isso o mais desafiante. Encontrar, através de um processo de tentativa e erro, a forma certa de concretizar o conceito.
O processo é bastante meticuloso e complexo e, apesar de ter sido inspirada por um objeto de produção mecânica, esta obra acabou por ser concretizada de forma artesanal. Tive de fragmentar a composição que desenhei em pequenos pontos para criar uma ilusão de tons e sombras. Depois, a intervenção na carroçaria do Mini antigo que escolhi foi executada com o uso de brocas de ferro com diferentes diâmetros. Foram feitos quase 30 mil furos. Depois, ainda houve a fase do acabamento para chegar ao efeito final. Foi um processo longo e desafiante, mas também gratificante.
Como é que surgiu a inspiração para idealizar esta obra?
O processo de desenvolvimento passou por muita pesquisa e também por visitas técnicas à fábrica da Mini e ao museu da Mini, em Oxford. Tudo isto serviu como fonte de inspiração. Foi muito interessante poder mergulhar neste mundo mecânico, uma verdadeira experiência de aprendizagem. É verdade que a Mini faz parte de um imaginário coletivo e isso tem relevância. Aqui, o foco foi direcionado para aquilo que o Mini representa e o impacto que teve nas pessoas e nas cidades.
Uma criação democratizadora, que realmente pensou nas necessidades das pessoas e nas especificidades da vida urbana. Já tinha abordado esta dimensão em 2022 quando criei uma homenagem monumental ao Sir Alec Issigonis, o criador do carro original. O seu legado de abertura e acessibilidade também está refletido neste novo trabalho.
Já trabalhou com a Mini anteriormente. Qual é o tipo de relação que tem com a marca?
Esta relação com a Mini já dura há algum tempo e estende-se para além da minha prática enquanto artista. A Mini tem apoiado exposições e projetos da Underdogs e também o Festival Iminente. Estas parcerias são importantes no contexto da cultura porque permitem expandir a dimensão e o impacto do trabalho que é feito.
Já tinha feito outros trabalhos com automóveis, para a Seat. A abordagem foi diferente?
A minha abordagem acaba por ser sempre diferente de projeto para projeto. É uma das coisas que mais me realiza enquanto artista, poder explorar um mundo de possibilidades e, a partir daí, criar. O meu trabalho está muito ligado à cidade e o automóvel, enquanto objeto utilitário e elemento visual, é hoje quase indissociável da paisagem urbana.
É também fruto de uma evolução tecnológica que teve um efeito inegável no desenvolvimento da sociedade contemporânea. Aquilo que poderá ter sido semelhante nas abordagens é o reflexo desta ideia. Por outro lado, tanto a Seat como a Mini estão a tomar passos importantes no que toca à transição para um modelo mais sustentável, que é algo que me aproxima ainda mais deste tipo de parcerias.
Já desenvolveu trabalhos criativos para marcas como a Vista Alegre, a Sagres, a Super Bock e a EDP, além da Mini e da Seat. Como é que seleciona os convites que aceita?
Sinto-me sempre honrado quando sou convidado para criar novos projetos e estas colaborações apresentam desafios interessantes que apelam muito à inovação. São ligações simbióticas e experiências enriquecedoras. Do lado artístico, abrem-me portas a um nível criativo que talvez não fosse possível de outra forma. Para o outro lado, são oportunidades de integrar abordagens e perspetivas diferentes, a que poderão não estar habituados.
É um pouco isso que procuro quando recebo estes convites. Também já desenvolvi trabalhos com algumas marcas internacionais, como a Hennessy. Quando as visões estão alinhadas e nos permitem explorar novos universos criativos, e ao mesmo tempo apoiar a nossa missão, acaba sempre por fazer sentido.
O processo criativo das colaborações com marcas é muito diferente do das obras de arte?
Sim e não. Todos os projetos, sejam murais, obras de estúdio ou colaborações, acabam por resultar do processo criativo, conceptual, plástico e estético que tenho vindo a desenvolver ao longo da minha experiência enquanto artista. O que acaba por ser um pouco diferente nestes casos é que o contexto geral é logo apresentado à partida e é esse contexto que tem de ser estudado e explorado.
O resultado deriva sempre da minha abordagem criativa às ideias que surgem durante esse processo. É importante que exista um alinhamento de missão e mensagem e, acima de tudo, liberdade criativa. E também uma abertura para abraçar outros projetos, como a Underdogs e o Festival Iminente, o que permite expandir todo aquilo que temos vindo a concretizar nos últimos anos.
Quais são os outros projetos que tem entre mãos com outras marcas?
Neste momento, tenho alguns projetos que estou a desenvolver, ainda não posso revelar quais, mas mais dedicados à exploração de novos materiais e técnicas. Para mim, é muito importante a evolução constante, a imersão em novos territórios artísticos que quero explorar.
Em termos de criações artísticas que não envolvam marcas, que projetos tem para este ano?
Agora em abril, vai ser inaugurado, no edifício da Câmara Municipal da Amadora, um mural em azulejo que criei com o lendário fotógrafo Alfredo Cunha, por quem tenho uma grande admiração. É um projeto que integra as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril. Este ano, vai ser também marcado pela conclusão da primeira parte de um projeto monumental que estou a fazer para o Grand Paris Express, uma nova rede de metro com mais de 200 quilómetros e 68 novas estações.
Fui convidado para criar uma intervenção de arte pública em grande escala para a estação de metro de Orly e concebi um mural composto por mais de 11 mil azulejos acabados à mão. Este projeto também terá intervenções em outras estações feitas por artistas, como a Mona Hatoum, o JR, o Daniel Buren, o Eduardo Kobra, o Michelangelo Pistoletto, o Krijn de Koning e o Superflex.
Estou também a trabalhar numa grande exposição individual num museu em Bruxelas, que ainda não posso divulgar, mas que também vai ter uma componente importante de intervenção na cidade.
Já criou NFT, idealizou peças de cerâmica, fez curadoria para festivais e vídeos para os U2. O que é que ainda lhe falta fazer?
Apesar de haver coisas que ainda quero concretizar, gosto de ter uma postura de abertura em relação a tudo que a vida pode trazer. Gosto de ser desafiado e de levar o meu trabalho para além daquilo que eu próprio posso achar possível. Uma das melhores partes de ser artista é poder trabalhar com uma sensação de ausência de limites.
Acionista minoritário na Solid DogmaFundada em 2015 por Alexandre Farto e Pedro Pires, a Solid Dogma, apresentada ao mercado como uma agência criativa que pretendia juntar artes e marcas, continua a cumprir o seu propósito. Quase uma década depois, Vhils continua ligado ao projeto, ao contrário do ex-sócio, que, a 8 de janeiro, anunciou a saída da empresa para se dedicar à Poets & Painters, uma editora independente que alia a poesia ao design através do lançamento de livros e de objetos artísticos. A Solid Dogma, que desde 2021 é detida maioritariamente pelo grupo Independence Investments, desenvolveu, em meados do ano passado, a nova identidade visual da Mimosa. Na reta final de 2022, tinha criado a imagem, a assinatura e o posicionamento da nova máquina Rise da Delta Q, uma criação estética do arquiteto e designer francês Philippe Starck. Atualmente, são vários os projetos que a agência tem em mãos. “Hoje em dia, não estou envolvido nas operações diárias mas, enquanto acionista minoritário, estou atento à sua evolução”, garante Alexandre Farto. |
Parceria com Vhils absorve 30% do orçamento de marketing da MiniIniciada em 2021, a parceria entre a Mini e Vhils, que absorve 30% do orçamento de marketing da marca automóvel, tem sido benéfica para ambas as partes. “Temos propósitos comuns, queremos ter uma intervenção nas cidades que deixem uma marca positiva e encontrámos no universo do Vhils o terreno onde o podemos exprimir”, justifica, ao Meios & Publicidade, Gonçalo Empis, diretor-geral da Mini Portugal. Em troca de visibilidade, além de patrocinar a Cultural Affairs, organização fundada por Alexandre Farto que gere a galeria Underdogs e dinamiza o Festival Iminente, a empresa também disponibiliza uma frota de 15 carros ao artista. Vhils, a par do cantor e compositor Dino D’Santiago e da ativista Rita Tapadinhas, fundadora do projeto Plant a Choice, é também um dos três novos embaixadores nacionais da Mini. “Acreditamos mesmo nesta parceria e o valor que investimos, que tem estado estável ao longo dos anos, mostra a importância que lhe atribuímos”, sublinha o responsável. Nos últimos três anos, a colaboração com a Mini com Vhils deu origem a várias iniciativas. Logo no primeiro ano, resultou na criação de uma edição exclusiva de tejadilhos artísticos, assinados por artistas emergentes nacionais que colaboram com a Underdogs. “O dinheiro que os clientes pagaram foi investido em projetos de responsabilidade social”, revela Gonçalo Empis. Em 2022, o fundador da Mini, Sir Alec Issigonis, foi homenageado por Vhils com uma criação em brita no topo de um silo automóvel abandonado, em Lisboa. Depois do Mini MkI de 1965, apresentado publicamente a 20 de março no Vhils Studio, no Barreiro, a próxima fase do projeto colaborativo já está a ser pensada, com ações que integram o plano promocional da marca para 2025. “Não posso ainda revelar muito mas, depois de termos atuado num carro antigo, o nosso desejo é fazermos algo de especial num dos modelos da nova geração”, confidencia Gonçalo Empis. |
Artistas que (também) não resistiram ao apelo da publicidadePelo desafio de experimentar uma área diferente e/ou pela necessidade de diversificar as fontes de rendimento, têm sido muitos os artistas que, ao longo das últimas décadas, têm desenvolvido projetos com marcas. Uma das colaborações mais populares é a que uniu Andy Warhol à Campbell’s. Ainda que inicialmente o impulsionador da pop art se tivesse apropriado indevidamente das latas de sopa de tomate da empresa para a primeira exposição individual que fez, em 1962, a marca acabaria por se associar ao criativo para se promover. No final da década de 1960, lançou o souper dress, um vestido de papel com padrões inspirados nos desenhos do artista. O primeiro trabalho de publicitário de Andy Warhol foi, no entanto, uma ilustração para uma marca de sapatos femininos, publicada na revista Glamour. Anos mais tarde, faria o mesmo para a Coca-Cola. Em Portugal, a marca de refrigerantes norte-americana também colaborou com um artista. O escritor e poeta Fernando Pessoa, em início de carreira, foi o autor de “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”, um slogan ainda hoje recordado. O convite partiu da Hora, a primeira e única agência publicitária que existia em Portugal no Estado Novo. Mais recentemente, além de Vhils, embaixador nacional da Mini que já promoveu a Seat, a Vista Alegre, a Sagres, a Super Bock e a EDP através das suas criações artísticas, também a artista plástica Joana Vasconcelos emprestou o seu talento à Dior, em Paris. Antes, tinha criado Giardino dell’Eden, o jardim labiríntico de flores artificiais, luz e som que a Swatch apresentou num pavilhão insuflável na Bienal de Veneza. A parceria estendeu-se depois ao Swatch Lookseasy, o primeiro relógio da marca a incluir elementos artesanais. Ao longo do tempo, um pouco por todo o mundo, foram muitos os artistas plásticos que viram a sua arte usada para promover bens, serviços e empresas. Roy Lichtenstein fez ilustrações para publicitar eletrodomésticos e Toulouse-Lautrec criou cartazes para a sala de espetáculos Moulin Rouge, em Paris. Edward Hopper e René Magritte também o fizeram em início de carreira. Para sobreviver, Keith Haring aceitou trabalhos para a Lucky Strike, Absolut Vodka e Quick. Nas últimas décadas, muitas marcas também recorreram a artistas clássicos para se promoverem. O logotipo de La Laitière da Nestlé é a figura feminina de um dos quadros de Johannes Vermeer. A antiga imagem da Manpower tinha uma figura masculina desenhada por Leonardo da Vinci. O icónico bigode de Salvador Dalí também inspirou a atual imagem da Chupa Chups. |